Desabamento do Edifício Andrea, em Fortaleza, completa 1 ano — Foto: João Pedro Ribeiro/ TVM
Tragédia em Fortaleza deixou nove pessoas mortas. Dois engenheiros e um pedreiro aguardam definição da 1ª Câmara Criminal para serem levados a julgamento.
No dia 15 de outubro de 2019, às 10h28, Fortaleza parou. A estrutura colapsada do Edifício Andrea, no bairro Dionísio Torres, soterrou 16 pessoas, tirando a vida de nove delas. Exatamente um ano após, os indiciados pelo desabamento ainda não sabem por qual crime serão julgados.
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Antes e depois do prédio de 7 andares desabado em Fortaleza — Foto: Reprodução/Google Street View; Reprodução/SVM
Vítimas da tragédia
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Vítimas do desabamento de prédio em Fortaleza — Foto: Reprodução/Redes sociais e TV Verdes Mares
No fim daquela manhã, o estudante de arquitetura Davi Sampaio, 23, registrou uma foto sob os destroços do número 2405 da Rua Tibúrcio Cavalcante, sorrindo, para tranquilizar a família. Ele ainda tentou salvar o gato de estimação, Nino, enquanto o chão se abria sob os pés e ouvia os sons de entulho desmoronando.
“Tive o impulso de botar meu corpo pra fora da porta, dei um passo e me virei pra chamar meu gato. Foi então que tudo desabou. Foi um mix de muita poeira, entulho e emoção. Chorei bastante. Depois de um leve surto, parei, respirei, e liguei pros meus pais”, remonta.
O pai dele, Paulo Rômulo Bezerra, 60, estava num banco quando recebeu a imagem. Do caminho de volta até o prédio, só lembra do desespero que anestesiava. “Aquilo foi a mão de Deus que segurou meu filho. O Davi faz um ano agora no dia 15 de outubro. Os bombeiros disseram pra ele ficar na posição fetal, pra conseguir sair do buraco. E assim ele nasceu de novo”, reconforta-se.
Das linhas tortas da tragédia, Davi faz poesia. “Esse acontecimento me mostrou que tudo é passageiro, nada é fixo, nada é permanente. Não adianta você se apegar a um local, a objetos, porque não vai durar. Ele eliminou meu apego por certas coisas, e me ensinou a continuar vendo a vida de uma forma milagrosamente bonita. Me intensificou a viver menos no passado, que é história, e no futuro, que é incerto. O agora é uma dádiva, não é à toa que o nome é presente”, explica.
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Agentes do Corpo de Bombeiros do Ceará tentando escutar algum chamado de socorro vindo dos escombros — Foto: João DiJorge/Photopress/Estadão Conteúdo
Ainda hoje, Felipe Silveira, 33, engasga na saudade. Primeiro, da partida da mãe, em 2018. Depois, da despedida do pai, Antônio Gildasio Holanda Silveira, 60, e da irmã, Nayara Pinho Silveira, 31, mortos no desabamento. Ele estava em Brasília, no sofá de casa, quando reconheceu em vídeos o muro do prédio onde o pai e a irmã moravam há apenas 15 dias, no 3º andar.
“Quando cheguei e vi aquele prédio desabado, pensei ‘meu Deus, não tem condição de ninguém sair vivo daí’”, relembra. Como para confirmar a impressão aterradora, os corpos de Gildásio e Nayara foram retirados dos escombros no dia 17 de outubro. Mas, um mês antes, a psicóloga já havia se despedido.
“Fizemos uma viagem de família pra Miami, em 2017, e a Naná ficou pedindo muito pra irmos de novo em setembro. Ela tinha sonhado que a mamãe pedia pra nós irmos pro local onde ela tinha sido mais feliz. Ela chorava dizendo ‘irmão, por favor, vamos nem que seja pra passar três dias, preciso muito disso’. Fomos. E 20 dias depois que voltamos, ela partiu. Será que ela sabia que era uma despedida?”, emociona-se Felipe.
Resgate
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Bombeiros distribuíram flores entre familiares das vítimas de desabamento de prédio em Fortaleza — Foto: Natinho Rodrigues/SVM
Os trabalhos de resgate duraram mais de 103 horas, com a colaboração de 500 pessoas - dentre elas, 135 bombeiros que se revezavam 24 horas por dia. Além deles, brigadistas, médicos, socorristas, psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, policiais, agentes de trânsito e civis participaram ativamente dos trabalhos no quarteirão marcado pela dor e pela esperança.
O coronel Eduardo Holanda, comandante geral do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Ceará (CBMCE), tem no Andrea a operação mais complexa da corporação em mais de 90 anos de história. Ele começou a coordenar os trabalhos voltando de uma viagem a Brasília.
“Quem estava lá no dia a dia, na chamada ‘zona quente’, obviamente se sentia cansado mas não queria parar. Era uma dificuldade minha e acho que de todos os bombeiros tentar se desligar por um momento que fosse pra recuperar as energias e retornar. Sem dúvida, o desgaste físico a gente só consegue perceber no final da operação”, comenta ele, que passou as primeiras 40 horas sem dormir.
Os agentes fardados também tinham a colaboração de uma rede de voluntários civis articulada pelas redes sociais. Um dos pontos de apoio foi uma casa cedida pelo dono após uma ligação do funcionário público Daniel Serpa, 43. Ele chegou ao Andrea um dia após o desabamento, e dali só sairia na noite do sábado, 19 de outubro, com o fim da operação.
“A gente queria ajudar quem oficialmente estava encarregado disso. Na nossa ‘casa’, tinha água, quentinha, colchonete, área de descanso, equipamentos de proteção, toda uma estrutura. Era algo que pedia muita gente, muito esforço e muita pressa”, conta. O grupo coordenado por ele chegou a ter 100 pessoas, das quais 30 mantém contato até hoje.
Processo judicial
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Empresa vistoriou edifício Andrea um mês antes do desabamento e encontrou pontos críticos na estrutura — Foto: Reprodução
Os engenheiros José Andreson Gonzaga dos Santos e Carlos Alberto Loss de Oliveira, além do pedreiro Amauri Pereira de Souza, haviam sido contratados pelos condôminos do Edifício Andrea para fazer um processo de recuperação predial. A Alpha Engenharia, empresa sob posse de Andreson, iniciou as atividades corretivas um dia antes do desabamento, e os serviços manuais atacaram ao menos quatro pilares do condomínio.
O processo está sob tutela do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) e decorre de entendimentos distintos da Polícia Civil e do Ministério Público estaduais. Enquanto a investigação os indiciou por homicídio culposo (quando não há intenção de matar), o MPCE entendeu que houve dolo eventual no caso, e pediu à Justiça que eles fossem julgados pelo Tribunal do Júri, uma vez que eles teriam assumido o risco de provocar as mortes.
De acordo com a promotora de Justiça Ana Cláudia de Morais, o trabalho foi cuidadoso para fazer esse pedido à 14ª Vara Criminal de Fortaleza. “A gente passou um mês estudando e viu que os engenheiros e o pedreiro não tiveram o cuidado devido quando iniciaram a obra. Quando eles fizeram, foram descascar os pilares sem os escoramentos. Então, com esse ato, eles assumiram o risco de que aquele desabamento ocorresse”, ressalta.
A defesa dos engenheiros e do pedreiro entrou com recurso no Tribunal de Justiça. Agora, está nas mãos da 1ª Câmara Criminal definir por qual crime eles serão julgados. Ainda não há data definida, mas os autos já foram considerados conclusos para a decisão; basta que o processo seja pautado para o colegiado.
Em nota, o TJCE informou que “os autos estão tendo tramitação regular no Judiciário e que, em apenas seis meses, já teve várias movimentações, obedecendo sempre os prazos processuais e os procedimentos necessários”. Segundo o Tribunal, “o maior objetivo do TJCE é julgar os processos de forma célere e dar resposta rápida ao cidadão”.
A defesa dos engenheiros foi procurada pelo G1, mas não respondeu antes da publicação desta reportagem. Contudo, a linha apresentada aos julgadores no processo é de que o prédio já estava bastante deteriorado e não houve intenção dos engenheiros e do pedreiro em causar o desabamento. Além disso, a defesa argumenta que só soube “nos próprios autos” das várias intervenções feitas “de maneiras equivocadas” no Andrea.
Os advogados também acrescentaram que não se sabia dos recentes reparos realizados nos pilares e que a edificação não teve “a devida manutenção” ao longo do tempo. Com relação à ausência de escoramento, os advogados afirmam que o serviço pelo qual a Alpha Engenharia foi contratada era de “recuperação predial, em que não há obrigatoriedade legal de escoramento”. Contudo, no contrato de prestação de serviço firmado para a obra, há a previsão de “escoramento de vigamento principal e secundário”, no valor de R$ 950.
Por G1 Ce.